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quinta-feira, 29 de março de 2007

Pequeno manual de sobrevivência

Laokoon - 1610 - El Greco
Eu moro num canto do céu
No brilho fugaz duma estrelinha
Cuja luz é emprestada do passado
Algum desatento
Pode tomar-me como morto,
Vencido ou datado
Porque o brilho é antigo
De muito, muito tempo atrás
Eu não sou mais hoje, o agora,
Meu futuro é precisa incerteza
Entretanto, ainda não morri
O pequeno brilho, por vezes
Toma guarda na quina da memória
Daqueles que bem me quiseram
Creio que não sejam tantos assim,
Mas dedico a eles o valor de milhões
Multidões, batalhões de choque
Eles são meus guias, orixás
Minhas contas de um velho terço,
Onde cada uma é reza de meu viver


Paulo Roberto Andel, 21/03/2007

Memórias de Ipanema

Houses Along a Road - 1881 - Paul Cézanne
Todos, em algum momento, descobrem Ipanema como um cenário mágico da Guanabara. Alguns mais cedo, outros mais tarde.

Eu sorvi o bairro por partes. Minha terra sempre foi Copacabana, mas aprendi a admirar a vizinha, feito fosse a linda irmã da namorada, respeitosamente. Nós, Copacabanas, por vezes temos a impressão de que nosso bairro nos basta. Ledo engano.

Começou quando era criança, aluno do Pernalonga.Volta e meia tinham atividades pelo bairro. Uma vez nos levaram a um terreno gramado, sem casa, onde havia aparelhos rudimentares de ginástica, uns pesos. Muitos anos mais tarde, achei até que fosse uma antiga academia do lendário Sinhozinho, um dos pioneiros da educação física no Brasil e paradigma da força em Ipanema. Isso era mais ou menos 1974.

Houve um hiato, e Ipanema tornou-se meu ponto de visitas semanal, aos sábados pela manhã. Era dia do curso de inglês, as aulas eram chatas. A rotina habitual rezaria descer Siqueira Campos até Avenida Copacabana, e virar à esquerda, no sentido do trânsito. Muitas vezes fiz oposição: ir na contramão dos carros significava mais uma aula fraturada. Não me arrependo. Era um ritual: percurso até Francisco Sá, subida e, num certo momento, sentir o cheiro, a delicadeza, o desconcertar de Ipanema. Era Visconde de Pirajá, era o Gordon, a General Osório, até chegar perto do Chaplin, nas imediações da Farme, outra Farme, outros tempos. Havia sempre meus amigos de infância por perto: André Ricardo, Pedro Brito, o saudoso Flavinho.Oitenta e três, oitenta e quatro, por aí. De tempos em tempos, era comum encontrar um amigo, Marco, no Leblon – e eu fazia questão de vir a pé, degustando o caminho, namorando Ipanema. Isso até os noventa.

Novo hiato. Ipanema virou casa de amor para mim, noventa e quatro. Apaixonei-me perdidamente por uma moça da Barão da Torre, Tatiana. Nada deu certo. Foram seis meses de beleza, poesia, paixão e fé. Eu cruzava as ruas do bairro, eu vagava de vez pelo Arpoador, tudo trazia-me um aroma de la dolce vita. Morreu amor, Ipanema ficou.

Virou o século, voltei para Ipanema. Aos pés de onde meu sentimento brotou, Gomes Carneiro. Virei comerciante, também não deu certo, dois anos sem um tostão de lucro material. Mas e as ruas? A beleza das mulheres? A simpatia das pessoas? O ir e vir com certo balanço a caminho do mar, que o poeta imortalizou? Mais uma vez, meus sábados eram sagrados no almoço, a mesma Pirajá, a mesma praça, tudo. Foi o mais recente capítulo. Passaram três anos.

Estou no hiato novamente? Sim.

Na verdade, é mero pretexto para uma volta a Ipanema, que há de acontecer em algum momento. Nunca morei na terra ipanemense, mas é como se eu dela fizesse parte desde o nada – ou mesmo antes dele, se tivesse que parafrasear um craque como Nelson Rodrigues.

Meus hiatos justificam-se: são necessários para que, cada vez mais, meu respeito, carinho e admiração por Ipanema fiquem reforçados, crescidos, permanentes, com os mesmos olhos infantis que eu a via desde os tempos do Pernalonga.

Paulo Roberto Andel, 23/03/2007

Lá no Cícero

Woman on a Terrace - 1907 - Matisse
As aulas são diversões, um acontecimento preliminar ao recreio – a maior das alegrias – o encontro com os colegas, com as garotas.
De soslaio, acanhadas elas vêm e vão. São mais espertas.
Tudo é diversão, preocupação só com provas e mesmo assim nem tanto. Como é maravilhosa essa convivência.
As meninas ainda são garotas. A saia pregueada dá o “charme”, os rostos cheios de sorrisos e olhares acanhados completam a primeira impressão. Crianças, gurias, futuras mulheres.
Ingenuidade, cabelos soltos pululam ao som da Atlântica. Em algumas é possível ver o mar, calmo, zen, mas às vezes bravio. Todos os meninos querem saber o que se passava dentro daquelas cabecinhas que nada falam. Cochicham por entre os corredores, risinhos. Romances só com os mais velhos, conosco, amizades. Como isso nos chateia! Desejamo-las para nós. Mas a malícia ainda está longe, somos só meninos.
Elas olham para os homens. Maldita natureza que nos dá o desejo e a convivência e não nos dá as armas.
Lindas, pensam em romance, em beijos, em carinhos e no cavalheiro que as vêm buscar. Suas curvas ainda se torneiam por um corpo virginal. As brincadeiras são infantis, maldades não encontram eco. A timidez, presente nos guris, não os deixa ir adiante. Quanto tempo perdido!
A aula de educação física é o melhor dos momentos, é a hora que as veremos de shortinhos. Pernas lindas, cheias de penugens que as podemos desejar sem culpa.
Os idos de 1980 se foram, mas as lembranças teimam em nos trazer as satisfações pueris de outrora. Caros colegas como foi maravilhoso tê-los nesses anos de intensa felicidade clandestina.

Publicado no site Comunique-se em: 07.05.2007