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sexta-feira, 18 de maio de 2007

Em desalinho


Awkward Every Moment - Laura Sharp Wilson – 2003

Sempre fui estabanado. Onde fosse derrubava tudo. Talvez pelo crescimento acelerado ainda quando jovem e a coordenação motora deficiente. O corpo tinha crescido e a noção de espaço não acompanhara.
 
Já no colégio de primeiro grau, hoje ensino fundamental, me via às voltas com as minhas pernas compridas demais. Tropeçava tanto que ganhei o singelo apelido de Tropeço numa referência a um personagem da família Adams.
 
Com as meninas então era um desastre, ficava todo atrapalhado. Juntava-se ao já natural desastrado uma pitada de timidez e completava-se o vexame. Era um tal de esbarrar, derrubar meninas, cair sentado e até se machucar. Depois, levantar e ver todos aos risos e apontando para mim como se fora um total retardado. Aliás, acho que a impressão era mesmo essa. Quem não me conhecia tinha por mim a nítida opinião de estar diante de um imbecil. Só quem estudava comigo, sabia das minhas notas e tinha certeza que era só mais um desajeitado.
 
Na educação física me escondia ao máximo, mas seria absurdo conseguir, pois era o maior da turma. Além disso, só por causa da altura achavam que deveria um excelente jogador de vôlei, basquete ou goleiro de futebol, estava eu em destaque. Mas, a descoordenação era tanta que sequer a bola acertava.
 
Os anos foram passando e o drama aumentando, namorar era confuso, beijar sem machucar a menina, impossível, pisar no pé, algo comum. Dançar era risível, se assemelhava mais a um pangaré num concurso de adestramento tentando ser garboso.
 
A partir de uma época comecei a me incomodar muito com aquilo. Perguntava-me: por que eu era assim? Acompanhar uma aula de ginástica na academia era hilariante até para mim. Enquanto todos estavam indo para um lado, lá estava um único atrapalhado no sentido contrário. Alguns mais previdentes e velhos conhecidos já se afastavam sabendo do encontrão inevitável. Os risinhos não mais existiam, já éramos adultos, mas os olhares de reprovação talvez fossem ainda piores.
 
Certo dia, fui convidado para jantar na casa de uma namorada. Tomei todas as precauções, me distanciei do que eu podia derrubar, dos copos à mesa e até dos vãos entre os pés do móvel. Mas, esqueci da empregada. Eis que ela veio com uma jarra de suco a servir. Perguntaram: "quer suco?". Prevendo o pior, agradeci e recusei. Mas, a mesma voz insistiu: "você precisa provar o suco da Marlene". Assenti com a cabeça e... virei-me bruscamente, resultado: derrubei tudo. Acachapei a empregada e o que havia por perto. Uma hecatombe completa. Apavorei-me, levantei rapidamente tentando acudir e com os joelhos fiz pior, derrubei todo o jantar. Até mesmo a ex-futura sogra me olhou com ar de reprovação e porque não dizer de insatisfação. Puxou a filha de lado e lhe cochichou algo, como que dizendo: "você namora esse idiota?". Resultado: nunca mais vi a namoradinha.
 
Os traumas só fizeram crescer e até uma coisa até então despercebida me ficou mais clara. Afora acanhotado era também incrivelmente desalinhado. Mesmo de terno ficava mulambo. Por mais que as roupas estivessem bem passadas e ajustadas era maltrapilho. As vestes não caíam bem. Até para alfaiate particular apelei, nada resolvia e ainda fui obrigado a ouvir dele o seguinte: "jamais vi coisa igual, você tem altura, não é gordo nem magro, mas é sempre mal-ajambrado, parece sempre um pelintra". Nem sabia o que queria dizer aquilo, mas boa coisa não era. Naquele dia chorei como criança, que nem como criança havia chorado.

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quarta-feira, 16 de maio de 2007

Companhias


Sunset Over The Riviera - Karen Stene

Era uma noite do florescer da semana, um velho bar de antigamente, e a junção do mar e areia de Copacabana formavam um delicado quadro de fundo, tudo para emoldurar certa jovem mulher aos meus olhos.

 

Jamais tivemos oportunidade anterior de fazer isso, o de pacificamente sentar à mesa em plena beira do Atlântico, para prosa leve e desvelada, despreocupada por melhor dizer. Tudo tem sua primeira vez, até que pode repetir-se muitas vezes. Coisas que os amigos fazem, das melhores; os namorados, quando buscam o prazer da audição; mesmo os casais de ocasião. Todos, enfim. O Maestro Jobim declarou que só acreditaria em justiça quando todos pudessem morar em Ipanema. Em minha ousadia, complemento: justiça, apenas quando todos puderem saborear um garboso e pacífico chope em Copacabana, na orla, ao lado de predileta companhia. Mesmo que brevemente, vivi justiça.

 

Pensamento ao longe, alguns pressentimentos, mas nada que tirasse de mim a cativante presença da jovem mulher. Falava e contava de sua vida, de seu amor, de crenças e perspectivas. Por vezes, dissipava-se em sonora gargalhada; noutras, tomava ares de seriedade que, de alguma forma, não alinhavam-se com a expressão de seu olhar, nem da fisionomia – ambos, carregados de delicadeza e sem o ranço dos carrancudos, mais a beleza que já lhe é peculiar desde os tempos de Pedro Brito. Eu fitava as expressões, os textos e tudo fazia dali uma Copacabana de antigamente, talvez nem tão longe, mas claramente uma outra. Outros modos, outras histórias. Minutos e minutos correram feito loucos, de modo que as horas foram passando e nem havia como dar a devida conta. Eu também ri, eu também pensei e talvez tenha até falado mais do que devia, coisa que acomete os velhos de minha idade. Com os tempos, quase todos somos assim.

 

Era uma noite de luar exuberante, daquelas que Copacabana sempre faz por merecer. Descia calma, soberana, e provavelmente encantando os namorados pelos arredores.

 

A jovem mulher falava, cantava, contava histórias quase inacreditáveis e eu fazia vezes de silencioso expectador, ora esperando impactante novidade, ora contemplando os momentos agradáveis. Contava-me de certo alguém, decerto amor, e eu o senti certa ponta de inveja à distância, até um momento que, por força da narrativa, deixei de cobiçar o lugar. Não a companhia, naturalmente; desde muitos maios, não sabia de tão interessante mulher a contar causos, por mais tentativas que tenha praticado ao longo dos anos. São os tempos – e, neles, cabe um breve aprendizado sobre a importância da prosa, da conversa fiada e suave, do entretenimento com as palavras, que tantas vezes faz falta aos homens, às mulheres, e aos pares que se formam pelos mais variados motivos.

 

Eu tinha um compromisso. A companhia também. Poucos chopes, algumas iguarias, e despedimo-nos com o aroma do querer mais, imagino. As coisas passam rápido.

 

Despedi-me e deixei o bairro. Pelo caminho, encostado na janela do táxi, eu olhava as ruas, as calçadas, o ir e vir das pessoas e, subitamente, tudo pareceu-me ser como foi um dia. Uma outra vida, uma outra Copacabana, talvez aquela dos lanches no Cirandinha, mesmo no Bonino's; a Copacabana dos jogos de bola noturnos, sem iluminação, quando um ou outro chute desavisado atrapalhava os casais de namorados na faixa mais escura d'areia. Havia uma infinidade de Copacabanas: a das praças sem grandes, a das marquises sem moradores, a dos cinemas por todo canto. Tudo mundo, nada morreu. A memória eterniza.

 

Corrida rápida, cheguei em casa. Tempo de banho, preparar o último lanche, pensar no dia, na vida. Fim da jornada, meu telefone tocou e o texto causou-me um enorme dissabor: aconteceu uma decepção. Quem me falava do outro lado da linha sabia que ali, na frieza do telefone, seria a última prosa. Mal de amor.

 

Desliguei. Cogitei momentos de tristeza. Passaram ao longe. Quando eu lembrei do táxi, da velha Copacabana e da bela mulher que me encantou com sua outra prosa, tudo ficou menor.

 

Quando uma porta se abre para um caminho lamentável, importante é procurar outras, tantas, que ofereçam outros caminhos. Minha amiga Anne sempre fala dessas coisas, o de aumentar o leque, o estoque de probabilidades, tudo coisas dos profissionais da estatística.

 

Voltei ao amor partido. Perdeu valor, murchou.

 

Fiquei mesmo foi na dúvida se meu incômodo adveio do telefonema ou do fim rápido da conversa litorânea.

 

Vou voltar a Copacabana. Caso encerrado.



Texto de Paulo Roberto Andel

sexta-feira, 4 de maio de 2007

O espelho do jovem abnegado


Self-Portrait - Pablo Picasso - 1972

repare o inesperado, rapaz
fitando a ti num grande espelho
que te acolhe em impetuoso abraço
afaga-te e faz vezes de caso real
ele busca tua surpresa, teu encanto
perdido no álbum de fotografias
nas velhas lojas que cerraram portas,
na gente que sumiu das calçadas
vem sorrateiramente, num rompante
e não avisa ou notifica, faz questão
ele puxa-te feito fosse a mulher amada
ao deitar o rosto em teu peito
e subir lentamente, com toda calma
só para aumentar o gosto caloroso
do beijo mais provocante e suave
daqueles que não sabem tem o fim
repetem-se ora nos lábios, ora na mente
tomam-nos feito quem te abraça
é o inesperado, rapaz
vá de encontro a ele tal como juvenil
e sinta num segundo o sabor da vida


Texto de Paulo Roberto Andel