Noite de outono gelada, éramos eu e Max a caminhar pelo negrume da Gomes Freire, avenida que já fez os encantos da capital e hoje, embebeda-se de nostalgias, decadências e um futuro que pode tanto ser de samba quanto de réquiem. E nossas vizinhas, lindas? Não pudemos avistar, dado o adiantado da hora. Silêncio perene da rua, nada de carros a não ser nos motéis da região. Pedestres? Quais?
Veio a delegacia. Uma viatura estacionada e, dela, surgiu um policial com seu fuzil à nossa esquerda. Levei breve susto; afinal, nós, cariocas, por mais que vivamos uma guerra civil silenciosa que alguns insistem em esconder, ainda não estamos acostumados a fitar fuzis com naturalidade, feito fossem o chope dourado da felicidade ou a mulher amada. Outro policial, outro fuzil. Atento para a saída do terceiro homem, um talvez meliante, de olhos assustados e punhos algemados. Era um preto novo, de seus poucos vinte. Parecia aterrorizado. Não saberia dizer se era um assassino, um ladrão, um golpista ou mesmo um preto que, nesta terra, ainda é motivo para quase prisão, mesmo que tentemos veladamente ocultar o assunto, para não revelarmos nossa mais áspera face, a de sociedade perversa, fria, cínica, despreocupada com a grande maioria das gentes, preconceituosa e racista, pois. Os homens da lei também eram pretos, ou negros se o racismo inverso assim exigir; contudo, pretos diferentes, pretos em defesa da lei. E mesmo que estivessem mais do que certos, capturando um perigoso bandido, passou-me pela cabeça uma das cenas típicas de outro século, a do preto fugido, quando era reconduzido pelo capitão-do-mato ao seu dono. Não seria analogia barata, há resquícios de coisas assim em todas as terras que percorremos nesta capitania, como se eternamente estivéssemos condenados a viver como se fosse naquele modelo.
O horror foi de um instante, um triz, uma vírgula. Logo viria a próxima esquina.
Ledo engano.
Eram sons de sirenes. Ambulâncias vermelhas.
Demo-nos por conta, havia um sujeito no último andaime de uma obra abandonada na rua da Relação. Um candidato à morte voluntária, tal como eu fui um dia, feito cada um de nós por quase um segundo. Dezenas de pessoas ocupavam a rua, havia engarrafamento, confusão. Um sujeito perto de nós contou uma história, a de que seria um moço sem casa que, acolhido pelo pastor de uma igreja, roubou-a com um comparsa que foi preso denunciado, ameaçou acabar com a própria vida. Verdade ou não, eu e Max aceitamos a premissa.
Houve quem gargalhasse com a possibilidade da queda do sujeito, mais do que real. Alguns gritavam de perto da portaria virtual, pediam que pulasse e não arredavam pé dali, donde desconfiei que eram pouco afeitos às leis da física, na condição de potenciais vítimas terrestres de um suicida.
Nós fitávamos tudo de certa distância. Logo ao lado, o "Caveirão", veículo de combate que, teoricamente, é um instrumento de paz para populações carentes vitimadas pelo tráfico vizinho. Controvérsias à vista, creio.
Outro triz surgiu em minha vista. Eu lembrei do dia em que, ainda menino, vi corpos voarem em chamas do edifício Andorinha, o mesmo que hoje dá bons dividendos ao meu amigo de arquibancada, Max. Eu era um garoto e vi as mortes pulsando a todo instante. Recordei meses antes, quando três mulheres dependuradas por uma mangueira de incêndio, em um prédio da Senador Vergueiro, não resistiram e espatifaram seus sonhos no asfalta, tudo por obra de um louco incendiário.
Não havia fogo. Gelo, sim. Frieza, necessária quando a vida está no limite.
Enquanto o pastor e amigos subiram nos escombros para tentar dissuadir o possível suicida, um bombeiro subiu lentamente os andaimes. A lentidão de quem tem certeza da vitória, mesmo num momento como aquele, onde tudo parecia féretro. Houve um golpe, o bombeiro imobilizou o sujeito, os dois com a vida em risco. Uma vida foi salva, mesmo que efemeramente. Por mais estranho que pudesse parecer, e é, os mesmos que gritavam ao desesperado para que pulasse, aplaudiram o salvamento. Eu compreendo, pois rezo a cartilha de Enrico Bianco, onde só o que realmente importa no homem é a contradição.
Quando o espetáculo trágico se desfez, sem o final talvez esperado de maneira mórbida, os populares começaram a retirar-se. Max me disse do brilhantismo do homem, daquele que pôs a cabeça em prêmio para salvar o desconhecido: não sabíamos dizer quanto ganhava por mês, se tinha filhos, se a esposa em casa sabia que ele atrasara-se para o jantar para resolver um pequeno pepino profissional. Em seguida, o amigo se foi para sua Barra, sua Beverly Hills carioca sem suingue sangue bom, contrariado.
Eu desci a rua. Sozinho. Não havia mais risco. O preto novo foi encarcerado, o quase morto renasceu. Foi tudo por um triz.
A morte, sempre tão sombria e certa de sua vitória, ali naufragou.
Um ou outro bobo, quase todos devem ter ido para o bar, fazendo pilhéria do caso.
Meu silêncio tomou-me de assalto. Era tudo Gotham City, sem Batman, Comissário Gordon e nem mesmo a espetacular Mulher-Gato.
Só.
Texto de Paulo Roberto Andel
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