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quinta-feira, 26 de abril de 2007

Amores, algozes

O grito - Munch
A jovem senhora aguarda na fila com visível ar de cansaço, o que eu compreendo. Afinal, nem são sete da manhã, nem eu tive tempo de adormecer, e lá está ela. É forte, é digna, é silenciosa. Percebo que os vincos de seu rosto chegaram antes do justo e razoável, equivocados que estão com os traços suaves do mesmo rosto, reunindo fé e melancolia, esperança e tristeza. Tem a mão uma criança, uma menininha que deve ter por volta dos cinco anos e que, pertinente com a trajetória da infância, carrega um boneco e conversa com ele, quase baixinho. Sábia a menininha, sábias as crianças que, por vezes, falam para quem até ouve mas não há de responder. Melhor assim.

Continua aguardando pacientemente a sua vez na fila, debaixo do resquício de sol que se aproxima, solidária e silenciosa como outras senhoras que ali também se encontram, também com outras crianças e brinquedos espalhados nas mãos. É um grupo intenso. Parece-me que cumprem um ritual enquanto integrantes da espera: embora vestidas com roupas mais do que humildes, a dignidade lhes sobra. Indispensável também é supor as guloseimas que carregam nas não menos humildes bolsas, preparadas especialmente para aquela ocasião semanal: bolos, pastéis, talvez um frango. Todas na iminente expectativa que há de superar quaisquer revezes que se aproximem: a falta de acomodações, o desconforto de manter a impavidez estando com pesos a carregar e em pleno sol, a revista que será próxima e necessariamente humilhante. É lembrado que não possuem bens, contas, indumentárias finas, sobrenomes distintos e outros particulares que só os caciques de moeda conseguem - mas são serenas e firmes, delicadamente. Vejo um Brasil na fila, onde encontramos mulatas e negras, brancas e cafuzas, gentes de todos os lugares dessa terra - predominantemente nordestinos. Contudo, registre-se que o mais importante de tudo naquela fila de espera é o amor. Sim, o amor humilde e que recolhe seus pedaços nas lamentações para estar abrilhantado em instantes. O amor que supera a espera, as humilhações, a distância, a pobreza e tantas outras mazelas. O amor que desce nas imediações daquele portão enferrujado que serve que entrada para o depositário dos objetos de amor das imponentes senhoras da fila - os pais, namorados, maridos e avôs que ali aguardam um afável conforto efêmero, um beijo, uma visita, um toque de mãos ao rosto, um queijo.

A inenarrável crueza da vida nos presídios só pode ser ocasionalmente abafada pela caravana de amor que se forma naquela fila desconfortável de uma manhã de domingo. Senhoras, senhorinhas e crianças semeiam motivos para que os recolhidos da lei ainda tenham um motivo para sorrir. Há os que despejaram rancor e morte pelas ruas da Guanabara, assim como há os que roubaram galinhas; ficam todos empilhados num mesmo curral, onde a mesma violência não lhes deixa em paz. Não há dor que dure para todo o amanhã; por isso, esperam ansiosamente pelo sétimo dia da redenção do amor em paz. Não poderia ser em outro lugar que não a Rua Frei Caneca para selar a coincidência - o frei precisou ser fuzilado à época da colônia próspera porque nenhum algoz teve coragem de enforcá-lo, tamanha a sua dignidade - tamanho o seu amor.

As dores do corpo pela noite que se fez dia me atingem. Preciso ir.

Amor é o que aquela fila me disse aos olhos, por imagens torturadas mas fiéis.

Sempre.

Texto de Paulo Roberto Andel

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Para o dia que não dorme

Quadro de Nuno Nello
Os louros deitam suaves sobre teus ombros
Namorando teu rosto dentro da taberna discreta
Eu procuro grafite no teu olhar
Busco o açúcar mascavo da tua voz, que me serve de psicodélico agente
Você fala, tudo me soa música, densa, lenta e naturalmente melodiosa
Você ri, eu me perco num dia de muitos invernos atrás, quando todo tempo do mundo era nosso
Quando nosso louco amor fazia vezes de pacífico oceano
Lá fora, o veterano mundo novo come e dorme normalmente
E eu nem ligo
O mundo morre muitas vezes, respira com ajuda de aparelhos, sobrevive
Assiste impassível o escorrer do tempo numa ampulheta
Daquele dia longe até hoje, noites não faltaram, sonhos, perdas
Quatro mil voltas em torno do sol
E tudo, tão somente, para te ver novamente
E recordar o dia que não morre
Não dorme, nunca dorme


Texto de Paulo Roberto Andel

terça-feira, 10 de abril de 2007

Na sopa

Charing Cross Bridge - Andre Derain
Tinha 15 anos e adentrei num 584 lotado, avistei ao longe uma loirinha de olhos claros de tez alvíssima. Estava ouvindo um walkman, na janela seus cabelos finos esvoaçavam. Aproximei-me ao máximo que pude para me colocar em delírio com os anjos. Linda e sorridente, vez por outra se virava suavemente para entender o movimento dentro do coletivo.
Ansioso, tencionava sentar-se ao seu lado. Pensei positivo o máximo que pude e no decorrer da viagem, já mais vazio, consegui finalmente ficar mais próximo daquela musa. Devia ter uns 14 e continuava sorrindo com a música. Meu destino já estava chegando, precisava falar-lhe algo. Mas, o quê?
Seu perfume me chegava pelas madeixas louras, suas coxas roliças apertadas numa calça jeans me davam o contorno de quadris largos e ajudavam a realçar a diferença com a cintura fina coberta numa t-shirt. Com o balançar do ônibus, suas pernas encontravam as minhas. Eu já não me agüentava de volúpia. O sangue fervilhava, borbulhava, meu corpo estava tomado, anestesiado, a lascívia havia tomado conta.
Fala alguma coisa, eu pensava. O soprar mais afoito do vento vindo da janela fazia com que as longas melenas se enroscassem entorno do rosto e dos olhos. Cheguei bem próximo para que ela pudesse escutar e disse:
- O cabelo é bonito, mas incomoda né?
- É - respondeu ela com um imenso sorriso.
Como fui falar tal asneira? Fiquei com um "é" sem continuidade. Eu devia saber que perguntas de sim e não, ou similares, jamais podem ser feitas. E agora o que fazer? O que falar? Minha confiança se esvaiu num "é". Até minha anatomia se assossegou.
Fez o sinal. E lá foi ela, minha primeira cantada numa desconhecida. Sem sucesso. Saltou, fiquei lhe acompanhando com os olhos perdidos. De repente, ela olhou e fez um aceno carinhoso. Enrubesci. Depois daquele dia peguei a sopa todas as vezes no mesmo horário, queria vê-la novamente. Nunca mais a vi. Ficou uma paixão platônica por uma imagem que jamais enxerguei de novo, mas que a guardei para sempre.

quinta-feira, 5 de abril de 2007

Onze estrelas

Song of the Dog - 1877 - Edgar Degas
todos os dias temos ou tivemos vinte anos
cheios de súbitas certezas e desenganos
derramando plácidos romances descabidos
colhendo verdes esperanças para amadurecer
cada pôr do sol e o anoitecer de céu faceiro

todos os dias temos ou tivemos vinte anos
regando flores e breves analogias de fé
flocos de rebeldias carregadas de sabor
para nos aquecer um tanto imprudentemente
pela chama de um sonhado e finado amor

depois de vinte, mais um ano que se encerra
e apenas recomeça-se, o limiar de nossas vidas
nossas doces madrugadas por vitrais enluarados
novos beijos replicantes, dissidentes do temor

onze estrelas repentinas espetadas no céu do Brasil
são delicados cristais da juventude que nunca seca
mesmo quando eram outros sonhos
mesmo quando eram outros eram vinte anos

Paulo Roberto Andel, dezembro de 2000